quarta-feira, abril 04, 2012

E assim, falando da palavra, do eterno milagre em que ela perde o sentido, mas também se renova e se refaz, chego a duas perdas do cenário artístico nesta semana


Será a vida uma festa no céu?

[Óleo sobre tela:A vida após a vida.  Warren Johnson]

Meus primeiros poemas neste espaço foram escolhidos de propósito, pois têm a ver – e muito – com a proposta da coluna, com a proposta de vida da colunista.
O primeiro deles fala de meu compromisso com a palavra, de minha busca pela palavra, para fazer versos e falar verdades, ao menos buscar verdades não ditas, mal ditas, ou mesmo malditas, palavra que seja um desafio constante, sem precisar ser agressiva. O segundo fala ainda mais de mim mesma, pois sou uma incansável caçadora de ventos – sempre em busca do inusitado, do novo, do inesperado; remexendo no fundo de mim mesma e da vida, formulando perguntas, questionando buscando respostas, não semeio, mas caço ventos e melancolias e muitas vezes colho tempestades.
E assim, falando da palavra, do eterno milagre em que ela perde o sentido, mas também se renova e se refaz, chego a duas perdas do cenário artístico nesta semana. Um, Chico, o eterno Chico Anysio, que já chamaram de mestre do humor e que encarnou tantos e tantos personagens que perdemos a conta.
Disseram que Chico Anysio não morreu, mas que morreram Chico Anysio, tantas são as “entidades” (como alguém chamou os inúmeros personagens “encarnados” por ele) com que nos presenteou.
A outra perda, a de Millõr Fernandes, um gênio da palavra.
Se um fazia brotar o riso, outro fez a palavra sabendo a dor (a dor de ser brasileiro, naqueles difíceis tempos da ditadura). Palavra essa suavizada pelo humor; na verdade de um Pasquim, palavra-desenho, palavra fazendo livro, palavra em feitios diversos, mas sempre bem dita a bendita palavra.
E ambos fizeram jorrar água pura de verbo sempre renovado de fontes de incertezas, que de certezas é que a vida nunca se fez.
Enquanto tantos se acham cheios de estilo, dizem que Millôr se definia como um escritor sem estilo. Dá-me, Senhor, de beber dessa fonte de inteligência e criatividade, com direito a recheio de pura modéstia!
Quando a palavra advinda do poder constituído fazia jorrar o sangue (e ainda há quem comemore!), a alternativa para fazer oposição só podia ser através do humor e do disfarce (que o diga o Julinho, que nunca foi da Adelaide), para que fosse afastado de nosso país o sangrento Cale-se.
Enfim morreram, em uma só semana, duas personalidades e, enquanto aqui na Terra ficamos mais pobres de inteligência, de arte – nós que já somos tão pobres de amor - lá no Céu ocorrem festas e festas. Todas regadas a muito humor, em pitadas de rara inteligência, vibrando em riso matreiro ou em doses profundas de gargalhada.
Apresentam-se, para a festança, entre outros, Dercy e Golias, Costinha, Oscarito e Grande Otelo, Zacarias e Mussum fazendo as suas eternas trapalhadas e Bussunda que, entre planetas e cassetadas, deixa a casa e a vida de alma lavada.
Rony Rios procura por uma velha surda no banco da Praça, Golias dialoga sobre sua Escolinha com aquela outra, de um certo Raimundo; Roni faz cócegas em Dercy Gonçalves, que solta uma palavra compriiiiiiiida e um cabeça de Profeta chamado Paulinho, fazendo a tropicália às avessas, entoa o Baiano e os Novos Caetanos.
E Carequinha e o Palhaço Arrelia? Esses prometeram um espetáculo á parte, em sessão da tarde, com números especiais para a garotada.
Eles combateram o bom combate e agora, continuam mais do que vivos e recusam a negra mortalha. Pessoas inteligentes e criativas não morrem, pois deixam ecos e nesses ecos se faz o som de novo viver, de nova poesia. Simplesmente porque, independentemente do ofício a que se dediquem, sabem dizer o verbo, sabem fazer a palavra sagrada.
E nós outros, que aqui ficamos, vamos pela vida afora, representando o drama da vida, trazendo nele embutida alguma alegria (possível?), enquanto os podres poderes nos reapresentam a eterna farsa.
Até que o teto desmorone, o teatro desabe e, para sempre, caia o pano. Para que tudo possa renovar-se com a força do vento, do verbo, da vida, apesar da certeza de que o sonho é sempre intangível.

Intangível

Intangível, o sonho desfaz-se
deixando a poeira na face:
ao rés do chão,
jaz a folha despregada pelo vento
que no insano momento
enxergamos borboleta
junto à pedra falsa
que antevimos diamante;
na lata do lixo,
a farsa que intentamos boa prosa;
ao relento
sem cor sem perfume
o espinho
que pensamos pétala de rosa;
o Cristo no crucifixo
e, da música, apenas a pausa.

Até a próxima
M. Esther Torinho



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